O objetivo do presente artigo é fazer uma demonstração hipotética da integração das teorias funcionalistas e das teorias das sub-culturas criminais para fins de aperfeiçoamento constitucional do aparelho repressor do Estado. Inspiram essa demonstração as relações, fatos, grupos sociais e “status” social dos personagens que emergiram do contexto do assassinato da juíza Patrícia Acioli. Em momento algum o presente texto se propõe a um esclarecimento ou insinuação quanto àquele fato em si; mas, observando-o e aos elementos acima indicados – que se reproduzem no cotidiano policial-forense – fazer uma reflexão para uma maior constitucionalização da ação repressora estatal.
Em tosca síntese, pode-se dizer, conforme Alessandro Barata, que as teorias funcionalistas do crime pretendem estudar o vínculo funcional do comportamento desviante com a estrutura social, enquanto as teorias das sub-culturas criminais pretendem estudar como a sub-cultura delinqüente se comunica aos jovens delinqüentes, deixando em aberto a origem dos modelos sub-culturais de comportamento que são comunicados.
Do assassinato da juíza Patrícia Acioli emerge uma crônica do cotidiano policial-forense de cuja abstração se faz uma reflexão teórica. Há ali personagens de diferentes estratos sociais ligados pela via romântica; grupos corporativos que constituem sub-culturas ( entendendo-se o prefixo “sub” não no sentido pejorativo mas no sociológico); possibilidade de acesso a bens culturais restritos de determinadas classes; dificuldade de compreensão dos valores dos estratos inferiores e de sub-culturas.
Alessandro Barata cita um artigo publicado em 1.959 por R.A. Cloward na Revista Americana de Sociologia, em que este diz que
“entre os diversos critérios que determinam o acesso aos meios ilegítimos, as diferenças de nível social são, certamente, as mais importantes […]. Também no caso em que membros dos estratos intermediários e superiores estivessem interessados em empreender as carreiras criminosas do estrato social inferior, encontrariam dificuldades para realizar esta ambição, por causa de sua preparação insuficiente, enquanto os membros da classe inferior podem adquirir, mais facilmente, a atitude e a destreza necessárias. A maior parte dos pertencentes às classe média e superior não são capazes de abandonar facilmente sua cultura de classe, para adaptar-se a uma nova cultura. Por outro lado, e pela mesma razão, os membros da classe inferior são excluídos do acesso aos papéis criminosos do colarinho branco”.
O texto trata da inadequação de pessoas de estratos sociais diferentes no desempenho da conduta de outras classes. Indique-se que o texto é uma ampliação – para o mundo da ilicitude – da doutrina utilizada na explicação do acesso aos bens culturais por meios legítimos.
Uma derivação dessa teoria é a chamada “teoria das associações diferenciais”, proposta pelo criminólogo Edwin Sutherland, que analisa as formas de aprendizagem do comportamento criminoso e de como este aprender se relaciona com as associações diferenciadas que o indivíduo tem com outros indivíduos ou grupos. Concluindo acerca da criminalidade de colarinho branco, o referido autor diz que o crime de colarinho branco
“como qualquer outra forma de delinqüência sistemática, é aprendida; é aprendida em associação direta com os que já praticaram um comportamento criminoso, e aqueles que aprendem este comportamento criminoso não têm contatos freqüentes e estreitos com o comportamento conforme a lei. O fato de que uma pessoa torne-se ou não criminoso é determinado, em larga medida, pelo grau relativo de freqüência e de intensidade de suas relações com os dois tipos de comportamento. Isto pode ser chamado de processo de associação diferencial.”
Daí resulta que dentro do espectro de relações diferenciadas os valores das sub-culturas se sobrepõem aos valores da própria sociedade e da lei. Isso o exclui o integrante de sub-culturas do sentimento de culpabilidade na infração de um valor legalmente agasalhado, pois o valor da sub-cultura – por diferenciado – se sobrepõe àquele.
Por ter a sociedade brasileira uma estrutura pluralista – e também por isso conflituosa – há regras sociais comuns, e também, logicamente, valores e regras específicas de grupos diversos e antagônicos. Desta maneira, o direito penal não manifesta apenas regras e valores aceitos por toda a sociedade, mas também uma seleção de valores e modelos extraídos dos grupos sociais que atuam na sua construção (legisladores) e na sua aplicação ( aparato repressor – policia, magistratura, penitenciárias, etc…). Por esta visão, assim como o aparelho repressor pode reconhecer as defasagens da lei em relação aos valores sociais, pode também abrigar valores presentes em certos grupos e em áreas, mas negados por outros grupos e áreas.
Liga-se a isso outro elemento caracterizador do cenário em estudo: as milícias que exploram atividades econômicas. A marginalização destas é uma marginalização ativada pelo poder de definição das hierarquias superiores, que detêm a outorga de sua exploração. É uma atividade econômica como outra qualquer, mas como é explorada por quem não tem licença, é definida, para proteção dos que a tem, como criminosas. O mesmo raciocínio aplica-se ao “jogo do bicho“.
Em um contexto desses, pode-se hipoteticamente especular acercar do poder de acomodação que decorre de um relacionamento romântico de alguém dotado de valores de uma sub-cultura – seja corporativa ou criminosa – com alguém que tem o poder de decisão de seleção de valores como legítimos ou ilegítimos.
Um dos princípios da Administração Pública é a Impessoalidade. Encarna a nossa Administração o princípio iluminista de um governo de leis e não de homens. Mas ao mesmo tempo, nossa sociedade é plural, admitindo o relacionamento pessoal, profissional e amoroso entre pessoas de estratos sociais os mais diversos. Numa cultura de extração machista como a nossa, não há mal em um homem relacionar-se com uma mulher de estrato inferior; mas o oposto ainda causa espécie em muitos. Contudo, tanto num como noutro caso é razoável pensar que a via romântico-familiar pode ser um meio de acesso a bens culturas próprios de determinado estrato, entre os quais, o acesso ao poder de definição, seletividade e criminalização de condutas. Como garantir um governo de leis em tal dinâmica social?
Uma proposta é a adoção do “juiz sem rosto” e do “julgamento colegiado sem rosto” para determinados delitos. É claro que isso passa pelo estabelecimento do juiz de instrução – que necessariamente tem que ter rosto – mas é claro que se um juiz ou colegiado sem rosto julgar movido por prevaricação isso ficará evidente em relação a contrariedade de tal às provas produzidas.
As soluções passam pela diluição – na máquina pública – do poder de seletividade e criminalização de condutas; pela opacidade da personalização natural daqueles que terão poder de definição da conduta delituosa, em determinados casos; pela limitação do termo temporal de escolha de quem irá definir a conduta como delituosa ou não e a efetiva definição. Esses são alguns mecanismos que podem tornar a justiça mais impessoal e protegida do tráfico de bens culturais de prestígio e influência.
Para além dessa reflexão teórica, pensando concretamente no caso da doutora Patrícia Acioli, pode-se questionar o esquema processual que concentrou em um só magistrado o poder de julgamento de crimes contra a vida em um município de hum milhão de habitantes e conhecido pelas ocorrências policiais de máfias. É claro que ela era dura e diligente nos seus julgamentos. É claro que tanto antes como depois de sua morte ela era incensada e corretamente homenageada. Mas o que nos leva a refletir é o que há de iluminismo nisso: até onde esse esquema processual remete a um governo de leis? Ou será que ele nos remete à nossa herança medieval lusitana – do sebastianismo heróico que nos resgatará de injustiças ou de uma carolice mariólatra em que a mãe de justiça olha por nós? Essa fixação por heróis e heroínas, xerifes e joanas d’arc é uma marca cultural de nosso atraso, ao qual se acomodou a regra processual. É uma afirmação positiva e emocionada de pessoalidade, de governo de homens e mulheres virtuosos, mas não um governo de lei e da virtude.
Sem dúvida, um juiz, mais do que um Dom Sebastião ou uma Virgem Maria, é um homem sem rosto…é um homem e uma mulher com o rosto do Estado.

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