
Em recente texto expus sobre como a carta do apostolo Paulo aos Filipenses pode ser entendida como uma aplicação do cristianismo à realidade dos crentes que compõem o establisment ou qualquer faixa de poder de qualquer tipo que lhes dê uma posição mais favorável em relação aos outros. O fundamento do apóstolo é que a cidadania do cristão é primeiro a do Reino dos Céus, que subordina – na sua esfera de decisão e prática pessoal, sem prejuízo dos deveres seculares que não exigirem negação do senhorio do Cristo em sua vida – os direitos e deveres da cidadania comum. Aqueles camaradas da cidade de Filipos, cristãos aposentados, muitos provenientes da guarda de César, pagos por Roma e com direitos romanos, também traziam em sua maneira de ver o mundo muito das ideias de Epicuro.
Paulo em Atenas encontrou com os epicureus no Areópago – a praça pública dos debates intelectuais e filosóficos da velha capital dos gregos. O Areópago, conforme a lenda dos atenienses fundado pela deusa Atena, havia há muito decaído de seu status original, de centro político e judiciário e – em razão da democracia dos gregos – havia sido destinado tão somente ao gerenciamento dos locais de culto e à jurisdição de crimes religiosos. Por isso lá também era o local das audiências públicas de toda forma de filosofia e religião, inclusive as importadas, pois sua recepção positiva em tais discussões testemunharia favoravelmente na exclusão ou não inclusão do culto no rol das illicita religio dos romanos. É nesse contexto que Paulo para lá se dirige e profere o seu discurso registrado no livro bíblico de Atos dos Apóstolos, apresentando Jesus Cristo como o Homem ressurreto que há de julgar o mundo. Epicureus e estoicos debocham de Paulo ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos e se referem a ele como ‘tagarela’.
Epicureus e estoicos buscavam a ataraxia – a imperturbabilidade de espírito, a isenção de perturbação e dores. Para os epicureus isto advém de uma vida regrada pelo bom senso, que se exerce pelo sensacionismo, isto é, princípio pelo qual o critério de estabelecer o bem e a verdade é a sensação, identificado o bem com o prazer. A realidade seria composta como que de átomos que se unem e se separam constantemente (a realidade seria caótica) e esses átomos agiriam sobre a alma gerando as sensações, isto é, a virtude deles se constituiria pelo gerenciamento de uma realidade tomada como caótica a partir de sensações que se organizariam de modo a que não houvesse dor nem sofrimento. As sensações é que organizam a realidade e não essa se apresenta objetiva e pronta – mas é vista como caótica.
Edward Gibbon fala do predomínio do pensamento dos epicureus nessa época já desde algumas décadas antes de Paulo com eles se encontrar no Areópago e como tal maneira de pensar sustentou a debilitação da República dos romanos:
“Todas as barreiras da Constituição romana haviam sido arrasadas pela vasta ambição do ditador, todos os obstáculos extirpados pela mão cruel do triúnviro. Após a vitória de Áccio, o destino romano passou a depender de Otaviano, cognominado Cesar com a adoção pelo tio, e mais tarde Augusto pela bajulação do Senado. O conquistador estava frente de 24 legiões veteranas, conscientes de sua própria força e da fraqueza da Constituição, habituadas a vinte anos de guerra civil a todos os atos de sangue e de violência, e ardentemente devotadas à casa de Cesar, pois somente dela tinha recebido, e esperado, as mais pródigas recompensas. As províncias, havia muito oprimidas pelos ministros da República, almejam o governo de uma só pessoa que seria o amo, não o cúmplice, desses tirantes. O povo de Roma, assistindo com secreto prazer à humilhação da aristocracia, queria apenas pão e espetáculos públicos, que lhe eram prodigalizadas, um e outros, pela mão liberal de Augusto. Os italianos ricos e cultos, que haviam quase todos abraçado a filosofia de Epicuro, desfrutavam então os favores do conforto e da tranquilidade, e não admitiam que o ditosos sonho fosse interrompido pela lembrança de sua antiga e tumultuosa liberdade. Juntamente com o poder, o Senado perdera a dignidade; muitas das famílias mais nobres se haviam extinguido. Os republicanos de espírito e de talento tinham perecido no campo de batalha ou no exílio. As portas da Assembleia foram escancaradas de propósito para uma turba heterogênea de mais de mil pessoas, que traziam desonra a sua eminência em vez de por ela serem honradas.” (Gibbon, Edward. Declínio e Queda do Império Romano, Companhia de Bolso páginas 84 e 85)
Tal como falamos quando dissemos no texto sobre a igreja em Filipos, a prática do epicurismo conduzira à ideia de superioridade, que não é só psicológica e ideal, repercutindo num comportamento pedante e histriônico apenas. Ao contrário, ter como real apenas aquilo que as sensações informam como condutores da ataraxia significa tratar o que as sensações não albergam ou rejeitam como inexistente, algo que o Nosso Senhor Jesus Cristo não fez ao fazer-se Ele mesmo homem e padecer tudo que padeceu. Há pessoas que se trancam na bolha que lhes garante ausência de dor e sofrimento; bolha muitas vezes mantida pelo sofrimento dos outros e às custas da vida e liberdade de muitos. O conceito de extração de benefícios do caos é bem epicureu.
O mais perigoso é o princípio do sensacionismo, que estabelece as sensações como órgão do conhecimento. Pedro, no segundo capítulo de sua segunda epistola, no verso 2, a ele se refere, usando a palavra “dissoluções”, isto é ruína. A ideia é de que a prática deles é um dissolver – ao entender a realidade da vida, arruínam o que as suas sensações não albergam, inclusive quanto a si. Algumas traduções falam de práticas lascivas, em relação ao contexto gnóstico de desprezo do corpo. Mas com certeza não é apenas isso, embora em relação ao uso extremo das sensações tal se aplique.
João fala em “soberba da vida”. Esta, certamente, inclui epicureus e estoicos. A melhor tradução seria “a soberba de uma boa vida” em que as pessoas confiam no sucesso de suas práticas de vida em razão do resultado. Homens sem vícios, que tomaram decisões sensatas, não escandalizaram ninguém, mas o fizeram pelo caminho que não é o da Redenção. Lutero assim fala, ao comentar I João 2.16:
“Finalmente, a mais difícil é a soberba da vida. Ela, igualmente, nasce da vitória sobre os vícios. Por isso, embora possa ser abandonada ou mesmo falhar, ela não é vencida, a menos que pereça por completo devido à sua própria iniquidade. E o tipo mais prejudicial de vício, que coloca a pessoa no limite entre a glória de Deus e a destruição” (Obras de Lutero, Edição Americana, 10.429).
A soberba da vida é a confiança nas próprias sensações como fonte de conhecimento.
Há uma questão bem atual, um traço epicureu bem distinto, que perpassa todo o espectro político do cenário das manifestações de 8 de janeiro último: a conjugação do princípio do sensacionismo com a tecnologia. O tema é abordado nos escritos de Jean Baudrillard que denuncia um simulacro de realidade crescente na civilização – desde roupas falsificadas de marca até a vida fingida tomada por real das redes sociais.
Uma ilustração dessa questão é expressa na cultura popular em filmes como Matrix e séries como 1899. Neste, no episódio 7, sucede um diálogo, logo no início, em que o esposo diz para a esposa: “a realidade não é a ação dos neurônios no seu cérebro. A realidade não é o que está dentro, mas o que está fora”. Ao que a esposa responde: “mas isso não existiria sem nossas mentes para sentir. E extrapolando um pouco, talvez nunca saibamos se existe de fato. Nunca vamos saber se os estímulos no nosso cérebro são causados por uma realidade ou pela imitação de uma”.
Sem dúvida, vários dos presentes na depredação dos prédios públicos da Praça dos Três Poderes, seguindo o espírito da época, foram para lá mobilizados por redes sociais, mas não só isso – eles tinham a percepção da realidade formada pelos sensações advindas de suas interações na Web. O senso de gratificação ante curtidas e acesso a posts que lhes correspondiam aos ideais constituiu uma armadilha cognitiva que os capturou e deixou vulneráveis, inclusive à manipulação.
O mesmo ocorreu naqueles que tiraram proveito político do caos – foi uma prática cheia do veneno de Epicuro. Eles conseguiram formar a impressão negativa sobre seus adversários, pois o hábito de viver de imagem os caracteriza. Se os homens se movem por sensações, é a criação de impressões sobre eles que os conduz. Como dito pelo velho Olavo de Carvalho, no seu Jardim das Aflições (obra onde também expõe as afinidades do jardim de Epicuro com o marxismo, 3ª edição página 157)” …o homem movido por impressões não sabe para onde se move, e por isto a ciência de produzir impressões é cultivada com esmero por todos aqueles que têm a ambição de conduzir os povos”.
O veneno de Epicuro – assim como sucedeu com os romanos ao rasgarem a constituição e aceitarem a ditadura dos Césares – também correu no sangue dos brasileiros: os mais abastados e os integrantes do establishment, sob conselho das suas sensações, não reagiram aos fatos políticos e jurídicos que constituiu ruptura da ordem constitucional; os mais pobres, sob a sensação advinda da dopamina fajuta bancada pelos aplicativos de rede social, acreditaram que produzir algum caos lhes traria a vantagem da reação de algum general intervir para tudo pacificar, assumindo o poder.
Vários cristãos nominais, inclusive pastores, pelo que se diz, participaram da depredação; outros equipam ou orbitam a nomenclatura política que tirou proveito político desse caos – afirmo, sem medo, que a aderência a tais projetos, ainda que opostos no espectro político, os une na rejeição à obra redentora de Cristo.
A adesão à Cristo e Sua obra exclui a organização da vida a partir das sensações. Tudo já é posto anteriormente, é real e definido. Nada é caótico – caótica é a maneira de conhecer as coisas sem Cristo. Como dito por João, no capítulo 1 de seu evangelho, “Ele fez todas as coisas e sem Ele nada do que foi feito se fez”. Conhecendo Cristo, conhecemos a realidade. E isto não é feito pelas sensações. ”Não vem de vós, é dom de Deus.” Até aquilo que achamos caótico na verdade Cristo fez. Ele não entrou no templo dando chicotadas nos cambistas para criar um caos do qual extraísse alguma vantagem. Ele não se deixou crucificar para ou por causa de um caos. Estava tudo muito bem definido desde a eternidade.
Paulo foi chamado de tagarela pelos que buscavam a ataraxia, a ausência de dor e sofrimento. Quando se expõe o Verbo, é o próprio Verbo que se expõe. O Verbo que criou e sustenta todas as coisas – até as que não entendemos ou conhecemos e temos como caóticas. No final, o que aprendemos é que só o Evangelho mostra a realidade, mas os epicureus – e seus sucessores atuais, os marxistas e aqueles que estes impressionaram – fecham-se na armadilha de conhecer só o que lhes atrai. Para eles, não há motivo de levar em conta alguém que fale a Verdade. O Verbo se expôs – mas para aqueles que se sustentam na fragilidade de suas erráticas sensações, era mera tagarelice.

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