BLOG CASTRO MAGALHÃES

Editor: Carlos HB de Castro Magalhães (MTb 0044864/RJ)

Religião, Direito, Política, Cultura Pop e Sociedade

Editor: Carlos HB de Castro Magalhães, Registro Jornalista MTb 0044864/RJ

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Não é de hoje que o cinema e a literatura discutem a crise de significado nas profissões jurídicas. Desde os profissionais do direito das obras de Dostoiévski (como os juízes destinatários da queixas de Dmitri Karamazov e Raskolnikov em Os irmãos Karamazov, geralmente funcionários públicos que se prendem à forma e desprezam os valores implícitos nas regras que aplicam) até o pobre coitado do Joseph K,, do livro O Processo, de Kafka, a quem ninguém sabe explicar o motivo pelo qual ele está sendo processado; alcançando filmes como O Veredito, de Sidney Lumet, cujo personagem central – após anos de uma advocacia depressiva, incrédula e melancólica em relação à justiça e aos tribunais busca uma redenção – o certo é que as artes retratam esse drama humano que é claramente universal.


Better Call Saul, série disponível no serviço de streaming NetFlix, trata da mesma questão. A série – um spin-off (uma préquela) da série Breaking Bad (em conjunto com a qual deve ser interpretada, bem como com o filme El Camino, todos de Vincent Gillian), trata do advogado Jimmy ‘Saul Goodman’ McGill, um homem que busca na advocacia um significado para sua vida, encontrando nela meio para alcançar esse valor, vinculado à aceitação do irmão ou da mulher amada, nem sempre com métodos ortodoxos e muitas vezes com métodos moralmente questionáveis, culminando, no fim, na advocacia pelo poder e dinheiro.


Não se pode compreender Better Call Saul sem Breaking Bad – na verdade, a crise de significado da profissão jurídica retratada naquele é o reflexo da crise existencial maior que permeia a sociedade, conforme descrita em Breaking Bad. Nesta, Walter White, um químico de seus 50 anos, se torna produtor de metaanfetamina. No filme El Camino, num café da manhã com seu ajudante Jesse Pinkman, um rapaz de seus vinte e poucos anos, o Sr. White diz a ele que o invejava por não precisar chegar aos 50 anos para fazer algo especial como eles estavam fazendo.
A crise vocacional no Ocidente – que se reflete na advocacia – decorre da perda da transcendência e do senso da divindade, bem como de uma vida tão só imanente. Isto é tratado de modo evidente quando num dos episódios iniciais de Breaking Bad, o professor de Química – aos descrever junto com sua aluna os percentuais de substâncias químicas que compõem o corpo humano – termina num déficit. A aluna o questiona: “e a alma?”, ele responde: “não há alma, é tudo um com complexo de reações químicas”.


Em Better Call Saul há algo semelhante. Jimmy McGill, no início de sua advocacia, ao ganhar seus primeiros vinte mil dólares de modo um tanto questionável, conta o dinheiro em sua mesa e diz para si próprio: “sobre esta pedra edificarei a minha igreja“. O fundamento da profissão aí não é a Pedra que é Cristo (no sentido da cosmovisão calvinista (e cristã também – o calvinismo é um tipo de agostinianismo) segundo a qual a vocação é um produto da obra da redenção de Cristo no fiel; mas o próprio dinheiro que dá poder para organizar o caos à volta e alcançar os objetivos pessoais. Vê-se aí a pedra de toque epicurista, tão presente em nossa sociedade. Sem dúvida em Breaking Bad, num dos episódios centrais Walter White faz uma citação conceitual de Epícuro para Jesse Pinkman: “não há ordem lá fora, somente átomos voando caóticamente“, fundamento para conhecimento da realidade a partir do suas sensações materiais, confundindo ou reduzindo a percepção a isto.


A partir dessa perspectiva Better Call Saul expõe dramas humanos universais: a disputa entre irmãos (drama presente desde Jacó e Esaú), a submissão moral da mulher ao homem a quem ama (presente desde o Gênesis, na maldição lançada pelo Criador sobre Eva ao expulsar o primeiro casal do Éden – “teu homem, tua paixão, ele te governará“), os dramas decorrentes da opção entre modelos éticos diferentes (hierarquismo ético (escolha pelo mal menor) e relativismo ético), o poder da inveja nas relações, geralmente operando sob aparência de zelo (drama retratado já nos Evangelhos quando, no julgamento de Cristo, Pilatos constata que sob o zelo dos fariseus estava o moto da inveja).


Um dos traços tocantes de Better Call Saul é a dolorosa estória de amor entre Saul Goodman e sua esposa e companheira, Sra. Wrexler. A perplexidade, passividade na manipulação sofrida, e penosa cumplicidade com a degradação moral do seu amado marido são um retrato do que certamente acontece em muitos casais. A explicação imanentista dela da condição moral própria e do marido (eles são meramente tóxicos para com terceiros quando estão juntos, sem nenhum sentido moral mais profundo) não impede que suas afeições aflorem – na cena do ônibus quando dos capítulos finais – demonstrando que a questão é muito mais profunda do que mera ‘toxicidade’ (conceito discutível) relacional. As pessoas preferem ver toxicidade e não maldade no ser humano. Enxergar maldade exige compromisso moral.


Alguns apontam que a redenção da profissão jurídica está em dar mais espaço para a criatividade do profissional. Poder ser – mas é certo que esta criatividade também continuará a refletir as condições espirituais da sociedade. O ex ministro do Corte Suprema brasileira, Eros Graus, expõe um pouco sobre a criatividade dos juízes em seu livro ‘Por que tenho medo dos juízes’ e os tribunais de ética estão repletos de exemplos de criatividade dos advogados – o personagem Saul Goodman também era muito criativo.


William Simon, em seu livro A Prática da Justiça (Editora Martins Fontes), diz que na América (e também no Ocidente, de modo geral) “a noção de redenção profissional pertence a uma classe de valores qu inclui o amor cristão, a maturidade sexual freudiana e a auto-realização marxista“, (1ª edição, 2001, página 209). E geralmente, todos os discursos que ouvimos das pessoas querendo atribuir significado às suas vidas se enquadram nesse esquema.


Por amor cristão digamos não o amor cristão conforme a ortodoxia cristã, mas aquele tipo de amor cristão inaugurado pelos téologos do século XIX, no dizer de Schleirmacher, segundo o qual o “amor é a forma de comunicação de Deus”, sem nenhum compromisso com o caráter revelado da Divindade nos textos bíblicos. Esse conceito está presente no sermão pregado numa das cenas finais do filme Nada é para sempre, de Robert Redford, pelo Rev. MClean. Nesse sentido, amor cristão reduziria-se à postura bondosa e gentil, e até caridosa, sem necessariamente vincular-se a compromissos morais e éticos. Vários discursos que ouvimos no dia a dia apontam que pessoas projetam sua redenção por essa via. Os personagens Saul Goodman e Gustavo Fring demonstraram bondade na estória e o último era particularmmente gentil, amável e caridoso.


Quanto à segunda opção redentiva – a maturidade freudiana – encontra-mo-la nos discursos que ligam certas atitudes e comportamentos à maturidade e ao reconhecimento da vida como ela é. O apontamento de conformidade à realidade da vida, atos corajosos de infração ética ou moral (ou até legal) para adequar-se aos círculos de concentração de poder ou à aceitação social, são justificados como maturidade auto liberadora e expressão de autonomia em relação à moral vigente. Vemos esses discursos desde a solteirona que posta “sozinha, plena e feliz” na internet até o camarada de colarinho branco que diz “se não der a ‘bola’ não ganha a licitação”.


Por fim, outra opção redentíva disponível é a da auto-realização marxista – o revolucionário, o justiceiro social, o militante. Este é muito comum e visível. Na série, embora de modo suave, vemos a personagem Wrexler buscar isso no final através de seu trabalho voluntário. Na trama que ela e Saul Goodman tramm contra Howard Hamlin vemos o mesmo espírito. As redes sociais estão cheias de profissionais do direito assim.


A série narra essa busca por redenção pelos profissionais do direito – mas o script, por melhor que seja, ressalta a irrealidade de serem bem sucedidos tais projetos redentivos. Emblema disso é a cena que precede o ato redentivo de Saul Goodman no final da série, que compreendemos mais como uma licença poética de ode à redenção própria a tais dramas como algo que realmente possa acontecer. Nela, Saul Goodman é conduzido pelos corredores do fórum para a sala de audiências. A trilha sonora é o estribilho de um velho cântico do cancioneiro negro spirituals norte americano. “Only believe, only believe, all things are possible, if you only believe” (Basta crer, todas as são possíveis se você apenas crer). O cantico, todavia, é pura doutrina da redenção cristã. As letras originais do cantico falam em suas estrofes do preço pago por Cristo para a redenção do ser humano, conforme vemos na interpretrações de Yolanda Adams e Paul Rader e nas execuções do Harmonizing Four: “From the cross to the throne/From death to life/You went for his own/And paid the price/You could believe” (da cruz para o trono, da morte para a vida, você foi por Ele próprio/e pagou o preço/você pode crer“.


Porém no epísódio, é a fé pela fé, o fidelismo, essa religião parasita que de tempos em tempos encrusta nas denominações cristãs. Elvis Presley gravou uma versão dessa música completamente fidelista e sem referências às origens cristãs, documentando o inicio cultural do abandono da opção redentiva proveniente da obra de Cristo.
Breaking Bad, Better Call Saul e El Camino debatem os fracassos das propostas redentivas destes tempos epicureus e hedonistas. Seus personagens, homens comuns que vão num degradeè até os comportamentos desviantes, são tocantes e empáticos, mesmo em sua mais profunda depravação moral. O drama da ausência de significado relacionado às drogas como alívio é atual e presenciamos isso: o alcoolismo é elevado entre profissionais do direito e o uso de remédios tarja preta para dormir é comum entre eles. A epidemia de uso de opióides nos EUA demonstra que as indústrias farmacêuticas e o tráfico de drogas são os sacerdotes gêmeos da tradição dos epicureus. Viver é fugir da dor e abraçar o prazer – controlando os atomos caóticos quimicamente, na ausência de uma divindade que o faça.


O apóstolo Paulo, nas suas epístolas, condena a feitiçaria, cuja palavra no original grego é a mesma de fármacos – a feitiçaria usava substâncias de alteração de estado de consciência. O vinagre absorvido na esponja que foi oferecido – e rejeitado – por Cristo na cruz era um derivado da papoula, a matéria prima do ópio. Contra o conceito epicureu de que a realidade é um caos que produz dor do qual devemos fugir, Paulo escreve que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, que foram chamados segundo o Seu propósito”. Paulo transitava entre eles. Esse é o significado da vocação cristã, inclusive o significado para o trabalho: a convicção de ter sido chamado por Deus, de ter a tido semeada dentro de si inclinação de amá-Lo apesar da própria miséria. Essa verdade é significado e consolação do cristão para os trabalhos monótonos, aparentemente irrelevantes, burocráticos e sem sentido em que muitas vezes se encontra. É a vocação de Deus que redime o cristão e torna o que ele faz especial.


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