Para minha esposa e sempre namorada Roseli
O entendimento comum de Cantares de Salomão é interpretá-lo como uma troca de palavras românticas entre Salomão e a Sulamita. Salomão, filho de Davi, simbolizaria Cristo, enquanto a Sulamita representaria a Igreja. Contudo, uma leitura atenta do texto revela uma interpretação que desafia essa visão tradicional.
O livro poético contém indícios que tornam a interpretação convencional inconsistente. A Sulamita (ou um coro após ela mencionar o descanso de seu amado) refere-se à liteira de Salomão, na qual ele transportava suas esposas e concubinas, adornadas com materiais descritos por João em Apocalipse 18.12-13 como característicos do reino do anticristo. Ela relata que se desencontrou de seu Amado, um pastor de ovelhas, e, ao procurá-lo, não o encontrou, sendo espancada pelos guardas de Salomão (Cantares 5.6-7). Antes da passagem da liteira de Salomão por onde ela morava, uma cena semelhante ocorreu, mas os guardas não a agrediram (Cantares 3.3-4). No final do livro, ela devolve o dote que seus irmãos receberam de Salomão em arrendamento para que ela se unisse a ele, retornando mil pratas – a produção da vinha dada como dote – acrescidas de uma multa de um quinto do valor, conforme Levítico 5.16 e 6.5. Após isso, ela parte ao encontro de seu Amado, o pastor de ovelhas.
Essa leitura, conhecida como interpretação dramática, apresenta um triângulo amoroso entre a Sulamita, tipo da Igreja; Salomão em apostasia, tipo do sistema anticristão (1 Reis 10.14 c/c Apocalipse 13.18); e um humilde pastor de ovelhas, o Amado, tipo de Cristo.
O versículo que intitula este texto descreve o Amado da Sulamita como um ramalhete de mirra entre seus seios. Algumas versões traduzem como “saquitel” (um saco de pano simples) de mirra; Spurgeon menciona uma caixinha de mirra – sempre simbolizando algo precioso guardado em algo humilde, como um tesouro em vasos de barro. A mirra possui propriedades aromáticas, terapêuticas, conservantes e desinfetantes. Ao dizer que a mirra está entre seus seios, a Sulamita indica intimidade. Ela contrasta isso com o versículo anterior (Cantares 1.12), em que exsuda o perfume de nardo ao estar publicamente na presença do rei Salomão. Há, portanto, um contraste entre o Salomão apóstata, rico, ostensivo e violento, e o amor simples, íntimo e singelo entre ela e o pastor de ovelhas. Assim, quando ela surge no deserto abraçada ao seu Amado (Cantares 8.5), usa a mesma expressão empregada para descrever a liteira de Salomão, com suas esposas e concubinas, subindo pelo deserto (Cantares 3.6).
.
O apóstolo Paulo ensina que o relacionamento entre Cristo e a Igreja é o modelo para o vínculo entre marido e esposa. Nessa perspectiva dramática de Cantares, a Sulamita e seu Amado pastor nos oferecem lições. A primeira é que o verdadeiro amor se caracteriza e se fortalece na intimidade, não na exibição. A Sulamita usava nardo como uma escolhida do rei, mas sabia que o que a curava, conservava e purificava era a intimidade com seu Amado Pastor.
Outra lição é que a base do amor conjugal reside na virtude e no valor do outro. A Sulamita reconhecia e valorizava as qualidades de seu Amado pastor, colocando-as acima dos privilégios ostensivos oferecidos pela apostasia. Em tempos de hipergamia, esse princípio merece atenção.
Por fim, o texto aponta, além das lições sobre o relacionamento conjugal, que o cerne da espiritualidade genuína está na intimidade, na simplicidade e no segredo. Assim como muitos casais exibem suas afeições ou expõem suas vidas publicamente, a exibição escandalosa da religião – em busca de privilégios ou respeitabilidade – é um sinal de apostasia. Em meio às pressões culturais, é fácil ceder a essas tendências. Contudo, a Sulamita nos ensina que é preciso devolver as “mil moedas de prata” mais a multa de um quinto para romper esses vínculos. Em nosso caso, nosso Amado já pagou esse preço por nós.


Deixe um comentário