Na metade dos anos 80, movido pela curiosidade da adolescência, tive o prazer de ser sonoplasta de uma igreja. Os equipamentos eram os tataravós dos atuais. O sistema da igreja onde atuei por alguns anos era considerado moderno para a época: uma caixa de transistores com cinco canais – dois microfones para o púlpito, um para a mesa da comunhão e outro para o coral, na galeria. O último canal conectava uma vitrola e um gravador, instalados junto ao equipamento de controle. Os alto-falantes, fixados no rebaixamento de gesso do teto do santuário, distribuíam o som de forma equilibrada entre a congregação.
Era um sábado quando meu pai, pastor da igreja, me lembrou pela manhã: “Tá lembrado do casamento hoje na igreja?” Eu seria o sonoplasta. Chegamos cedo, como de costume para eventos assim. Logo, o noivo me procurou, trazendo uma série de LPs, os famosos “bolachões”, e indicou as músicas da cerimônia. Não me recordo de todas, mas a da entrada era Chariots of Fire, de Vangelis. Achei incomum um casamento com músicas de vitrola, mas me diverti com a ideia.
Quase tudo correu bem até a penúltima música, que antecedia o sermão. Após ela, tocaria apenas Chariots of Fire novamente, na saída dos noivos. À tarde, antes de sair de casa, preparei um lanche clássico: um copo de leite com Nescau e pão francês mergulhado nele. Durante a cerimônia, tudo ia bem até que, perto de executar a penúltima música, senti uma dor de barriga crescente. Pensei: “Assim que tocar a música que precede o sermão, descerei ao banheiro.” No LP, essa faixa era a última do lado A, em um canal interno, sem risco para a sonoplastia. E assim fiz.
Quem já manipulou um LP sabe que usávamos uma almofadinha ou algodão para limpar o disco e evitar ruídos. Eu havia feito isso. Mas, enquanto estava no banheiro, no momento de alívio, percebi que o disco estava arranhado. A música não avançava, repetindo incessantemente “Jesus me…” algo. Preso ali, a angústia crescia a cada “Jesus me…”. Fiz o que pude, desafiando a natureza e a gravidade. Assim que me senti seguro, recompus-me e corri para a sonoplastia, subindo os três andares pelos fundos do templo, enquanto o “Jesus me…’ ecoava ao fundo.
Ao chegar à galeria, encontrei o diácono Sebastião na sonoplastia. Ele era uma figura gentil, mas de modos bruscos. Ex-carregador da Antarctica, onde hoje fica um supermercado na rua Almirante Cochrane, e um dos primeiros moradores do morro do Borel nos anos 1940, Sebastião batia uma laje como ninguém. Ele deu um peteleco na agulha da vitrola, fazendo a faixa avançar, e meu pai pôde iniciar o sermão.
Sebastião deu um risadinha, voltou para a porta da igreja, que ele guardava, e eu me sentei. Esperei o sermão terminar e executei Chariots of Fire para a saída dos noivos.
A família do noivo permaneceu na igreja por apenas alguns meses. O incidente pareceu não os afetar, mas, anos depois, ao cruzar com um deles no centro da cidade, minha saudação não foi retribuída. Talvez ele simplesmente não me tenha reconhecido.


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