É melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério. Eclesiastes 7.2
Introdução
A cultura brasileira, profundamente sensorial e telúrica, celebra a vida através de ritmos vibrantes, danças coletivas e uma conexão visceral com o corpo e a terra, mas frequentemente ignora ou teme os valores espirituais que a morte, com sua inevitabilidade, traz à tona. Eclesiastes 7:2 afirma que “é melhor ir a uma casa onde há luto do que a uma casa em festa, pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério”, destacando a sabedoria que emerge ao confrontar a finitude. Da mesma forma, Provérbios 14:13 adverte que “até no riso o coração pode sofrer, e a alegria pode terminar em tristeza”, apontando para a fragilidade das alegrias sensoriais. Os dois cortejos de Preta Gil – o festivo de seus blocos de carnaval e o fúnebre após sua morte – refletem essa tensão cultural entre a exaltação do prazer terreno e o desconforto diante da reflexão espiritual que a morte impõe.
O cortejo de Festa
A obra de Preta Gil é profundamente telúrica, enraizada na pulsação cultural do Brasil, onde ritmos como axé, funk carioca e samba ecoam a energia da terra e do corpo. Suas canções, como “O Bonde” e “Din Din Dom”, são marcadas por batidas vibrantes e melodias que convidam ao movimento, criando uma experiência sensorial que apela ao tato, à audição e à imaginação visual. A artista utiliza a música para evocar cenários de festa, com letras que descrevem o “groove pra dançar agarradinho” ou a “fruta madura faceira”, conectando o ouvinte à materialidade do corpo e ao calor do coletivo. Essa abordagem telúrica, ancorada na corporeidade e na celebração, transforma suas apresentações em rituais de comunhão sensorial, onde o público é instigado a sentir a música no corpo e na alma.
O caráter sensorial da obra de Preta Gil é intensificado por letras que pintam imagens vívidas e despertam os sentidos, criando um imaginário moral que exalta a autoliberação do desejo e a autoexpressão. Em “Suave”, por exemplo, o “olhar penetrante” e o “doce veneno” evocam sensações de visão e paladar, enquanto “Stereo” sugere uma experiência auditiva envolvente com “pego em stereo”. Essas descrições sensoriais constroem um universo onde o prazer é celebrado, incentivando um modo de vida guiado pela entrega ao momento e à conexão física e emocional. Esse imaginário, pretensamente empoderador e libertador, na verdade é só um facilitador de uma cognição orientada por impulsos sensoriais, onde a busca pelo prazer imediato prevalece sobre os compromissos do amor duradouro e sacrificial, espirituais, especialmente em contextos de festa como o carnaval, que Preta tão bem representava.
Essa exaltação do sensorial e da autoliberação desemboca em uma percepção de promiscuidade, já que o convite à desinibição e ao “se jogar no mundão”, como em “Só o Amor”, dissolve barreiras de contenção social. A música de Preta Gil, ao priorizar a expressão corporal e o desejo, estimula a um hedonismo que desafia valores espirituais de compromisso, autosacrifício por amor a quem se ama, lealdade e fidelidade. Além disso, a obra de Preta Gil tenta normalizar a convivência da sensualidade com o valor do amor — que diferentemente do amor verdadeiro — manifesta-se em inclusão e autenticidade, como em “O Bonde”, que celebra a diversidade e a comunidade. Assim, enquanto o imaginário moral criado por Preta encoraja uma vida guiada pela paixão e pela conexão sensorial, desarma a cognição dos que a celebram em shows, festas e carnavais, liberando-os para conexões meramente carnais imaginando (ou aceitando a falsa justificativa) que aquilo é o amor enquanto um valor espiritual. Contradição pura.
O Bloco da Preta, fundado por Preta Gil em 2009, era um dos maiores e mais vibrantes do carnaval de rua do Rio de Janeiro, atraindo multidões expressivas que refletiam a popularidade da artista e sua conexão com o público. Em seu auge, como em 2017, o bloco reuniu entre 500.000 e 760.000 foliões no centro do Rio, conforme registros de fontes como posts no X, consolidando-se como um dos maiores megablocos da cidade. A grandiosidade do evento era amplificada pela presença de artistas convidados, como Ivete Sangalo, Anitta e Lulu Santos, que atraíam ainda mais pessoas, transformando o desfile em uma festa coletiva que tomava as ruas.
O público do Bloco da Preta era notavelmente diverso, abrangendo diferentes idades, origens e identidades culturais, refletindo a proposta inclusiva de Preta Gil. Jovens em busca de diversão, famílias, turistas nacionais e internacionais, e membros da comunidade LGBT+ formavam a base dos foliões, atraídos pela atmosfera festiva promovida pela artista. Cariocas de comunidades locais, como Madureira, misturavam-se a celebridades como Carolina Dieckmann e Thiaguinho, criando um ambiente onde todos se sentiam parte da festa.
Além do icônico Bloco da Preta no Rio, Preta Gil também levou sua energia para outros carnavais, como o Bloco da Preta em Brasília, em 2016, que atraiu um público igualmente diverso e entusiasmado, embora em menor escala devido ao contexto local. No Rio, o bloco desfilava tradicionalmente no centro, próximo à Praça Mauá, um local estratégico que facilitava o acesso de grandes contingentes de outros bairros. A presença de Preta, com sua performance e repertório que incluía hits como “O Bonde” e “Stereo”, criava uma conexão com os foliões, que lotavam as ruas em busca de uma experiência sensorial de dança e alegria.
O Cortejo Fúnebre
Preta Gil faleceu em 20 de julho de 2025, aos 50 anos, em Nova York, vítima de complicações de um câncer colorretal diagnosticado em janeiro de 2023. O tumor inicial, um adenocarcinoma no intestino, foi tratado com quimioterapia, radioterapia e uma cirurgia em agosto de 2023, que removeu parte do intestino e o útero, exigindo o uso temporário de uma bolsa de colostomia. Após a remissão anunciada em dezembro de 2023, a doença retornou em agosto de 2024, com metástases em linfonodos, peritônio e ureter, levando a novos tratamentos intensivos.
Em dezembro de 2024, Preta passou por uma cirurgia de 21 horas no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, mas o câncer continuou progredindo. Em maio de 2025, ela buscou tratamento experimental nos Estados Unidos, no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, e no Virginia Cancer Institute, em Washington. Apesar dos esforços, sua condição piorou durante uma sessão de quimioterapia em 16 de julho de 2025, e exames confirmaram a disseminação do câncer, dificultando a recuperação.
No dia de sua morte, Preta passou mal em uma ambulância a caminho do aeroporto, onde planejava retornar ao Brasil, e foi levada de volta ao hospital, onde não resistiu. Sua família, incluindo Gilberto Gil, estava presente em seus últimos dias. O velório foi planejado para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com a data dependendo da repatriação do corpo, conforme informado por Gilberto Gil em nota nas redes sociais.
O velório de Preta Gil, realizado em 25 de julho de 2025, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, das 9h às 13h, foi aberto ao público e atraiu centenas de pessoas, com estimativas entre 500 e 1.000 participantes. Fãs, familiares, como Gilberto Gil e Francisco Gil, e celebridades, incluindo Ivete Sangalo, Ludmilla, e Caetano Veloso, estiveram presentes, com filas formadas desde a madrugada e homenagens marcadas por cânticos e cartazes.
O cortejo fúnebre, iniciado às 14h53, partiu do Theatro Municipal em um carro aberto do Corpo de Bombeiros, percorrendo 9 km pelo “Circuito de Carnaval de Rua Preta Gil” até o Cemitério da Penitência, no Caju. Centenas de fãs, estimados entre 200 e 500, acompanharam o trajeto, com balões vermelhos em forma de coração, enquanto a cerimônia reservada na Capela Ecumênica e a cremação, às 17h, reuniram menos de 100 familiares e amigos próximos.
Conclusão
A cultura brasileira influenciada pelo Modernismo e pela Tropicália, com sua ênfase no sensorial e no telúrico, expressa nos cortejos festivos de Preta Gil que atraíam até 760.000 foliões, revela uma incapacidade em enfrentar os valores espirituais que a morte – como visto no cortejo fúnebre de 200 a 500 pessoas e no velório com 500 a 1.000 participantes – inevitavelmente evoca. Eclesiastes 7:2 aponta que a casa do luto oferece sabedoria ao confrontar a finitude, enquanto Provérbios 14:13 alerta para a tristeza que subjaz à alegria efêmera. O contraste entre os blocos de Preta, que celebravam o sensorial e o prazer imediato, e seu cortejo fúnebre, marcado pela reflexão silenciosa, expõe o desconforto da cultura brasileira com a morte e sua incapacidade de integrar valores espirituais que transcendam a exaltação do corpo e da festa, deixando a sabedoria da mortalidade à margem. O contraste explicita a falta de transcendência da cultura da tropicália e do Movimento da Semana de 1922, incapazes de tratar um fato elementar da vida como a morte.


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