Por Carlos Magalhães
As relações entre Brasil e Estados Unidos atravessam um dos momentos mais delicados em décadas, com uma série de eventos que intensificam as tensões diplomáticas e colocam em xeque a cooperação histórica entre as duas nações. Desde questões envolvendo navios iranianos até acusações de perseguição política e disputas comerciais, a crise ganhou contornos complexos, com implicações que vão além da política bilateral. A seguir, analisamos os principais componentes desse conflito, que têm gerado debates acalorados e colocado o Brasil sob escrutínio internacional.
- Navios Iranianos: Um Ponto de Atrito com Washington
Em fevereiro de 2023, o governo brasileiro, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, autorizou a atracagem de dois navios de guerra iranianos no Rio de Janeiro, uma decisão que gerou forte reação dos Estados Unidos. Esses navios, sancionados pelo governo americano devido às relações do Irã com atividades nucleares e terrorismo, foram recebidos logo após um encontro entre Lula e o presidente Joe Biden. A medida foi interpretada como um desafio à política externa dos EUA, que pressionam por isolamento do regime iraniano. O senador Ted Cruz questionou abertamente a decisão em uma audiência com Brian Nichols, subsecretário de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental, apontando a ação como uma provocação direta aos interesses americanos.
- Caso Filipe Martins: Suspeitas de Fraude Transnacional
O caso do ex-assessor internacional do governo Jair Bolsonaro, Filipe Martins, tornou-se um símbolo das tensões entre Brasília e Washington. Acusado de participar de uma suposta trama golpista, Martins foi preso em fevereiro de 2024 com base em registros que sugeriam sua entrada nos EUA em dezembro de 2022, junto à comitiva de Bolsonaro. No entanto, investigações apontam que esses registros, inseridos no sistema da Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP) em Orlando, eram falsos, contendo erros como o nome “Felipe” e um número de passaporte cancelado. O jornal The Wall Street Journal denunciou a manipulação, sugerindo a possibilidade de um “infiltrado” no CBP agindo em favor de interesses políticos brasileiros. A Justiça americana autorizou, em abril de 2025, o prosseguimento de uma ação movida por Martins contra o Departamento de Segurança Interna (DHS) e o CBP, com o juiz Gregory Presnell reconhecendo indícios sérios de falsificação. O caso não apenas questiona a lisura das investigações no Brasil, mas também levanta preocupações sobre a segurança nacional dos EUA.
- Seção 301: Investigação Comercial e a Avenida 25 de Março
A recente decisão do governo de Donald Trump de invocar a Seção 301 da Lei de Comércio dos EUA para investigar práticas comerciais brasileiras adicionou um novo capítulo à crise. A medida, que pode resultar em tarifas de até 50% sobre produtos brasileiros, inclui até mesmo uma análise das atividades comerciais na Avenida 25 de Março, em São Paulo, conhecida por sua venda de produtos importados, muitos deles de origem chinesa, muitos falsificados e contrabandeados e que desrespeitam as regras de propriedade intelectual. Além disso, há a suspeita de que muitas empresas financeiras do Brasil operam lavagem de dinheiro de golpes e tráfico de drogas.
- Perseguição a Bolsonaro e Seus Apoiadores
A perseguição política contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores é outro ponto de fricção. Nos EUA, deputados republicanos e a mídia têm denunciado o que chamam de “lawfare” – o uso do sistema judicial como arma política – contra Bolsonaro e figuras próximas, como Filipe Martins. O Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, é acusado de conduzir investigações politizadas, especialmente após a Operação Tempus Veritatis, que prendeu aliados de Bolsonaro por suposta tentativa de golpe. A imposição de sanções dos EUA a Moraes, com base na Lei Magnitsky, por supostas violações de direitos humanos, intensificou o embate, sendo vista, hipocritamente, pela esquerda, como uma intervenção direta de Washington na soberania judicial brasileira; a própria esquerda beneficiária de ameaça de sanções semelhantes quando da gestão Jimmy Carter.
- Declarações de Lula sobre o BRICS e o Dólar
As declarações do presidente Lula sobre o fortalecimento do BRICS e a possibilidade de redução da dependência do dólar no comércio internacional também contribuíram para azedar as relações com os EUA. Em eventos do bloco, Lula defendeu a criação de uma moeda alternativa ao dólar, uma proposta que, embora ainda embrionária, é vista como uma ameaça à hegemonia financeira americana. Tais posicionamentos, aliados à aproximação do Brasil com países como China e Rússia, geraram desconforto em Washington, que interpreta essas ações como um alinhamento com adversários geopolíticos. Numa tentativa de reunir Rússia e China numa resposta conjunta às tarifas norte-americanas, Lula ficou isolado e fracassou.
- Ação da Truth Social e Rumble contra Moraes
As plataformas digitais Truth Social, de propriedade de Donald Trump, e Rumble, populares entre conservadores, entraram com ações contra o ministro Alexandre de Moraes, acusando-o de censura e abuso de autoridade. Essas empresas alegam que Moraes ordenou a remoção de conteúdos e perfis de apoiadores de Bolsonaro não só no Brasil, mas nos Estados Unidos e contra cidadãos americanos, violando a liberdade de expressão e a soberania dos Estados Unidos. A pressão dessas plataformas, amplificada pelo apoio de figuras políticas americanas, transformou o caso em mais um ponto de tensão, com implicações para a relação entre liberdade digital e soberania nacional.
- Delação de Carvajal: Um Fator de Instabilidade
Embora menos detalhada nas informações disponíveis, a delação do general venezuelano Hugo Carvajal, ex-chefe de inteligência da Venezuela, também foi mencionada como um elemento potencialmente explosivo. Carvajal, que possui informações sobre redes de influência na América Latina, pode ter fornecido dados que relacionam autoridades brasileiras a esquemas regionais, o que, se confirmado, poderia agravar as tensões com os EUA, especialmente no contexto da luta contra a corrupção e o crime transnacional. No entanto, a falta de detalhes concretos limita, por ora, o impacto dessa delação.
- Saída do Brasil da Aliança contra o Antisemitismo
A decisão do governo brasileiro de se retirar da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que promove medidas contra o antisemitismo, gerou forte reação, especialmente nos EUA. A saída, anunciada recentemente, foi interpretada por muitos como um enfraquecimento das garantias contra o antisemitismo no Brasil, expondo a comunidade judaica a riscos em um momento de aumento global de incidentes antissemitas. Organizações judaicas e congressistas americanos, como o senador Marco Rubio, criticaram a medida, apontando-a como um sinal de distanciamento do Brasil de valores democráticos compartilhados com os EUA. A decisão também foi associada à aproximação de Lula com nações críticas a Israel, como o Irã, reforçando as tensões com Washington.
Uma Crise Multidimensional
O conjunto desses eventos – dos navios iranianos à suspeita de fraudes transnacionais no caso Filipe Martins, passando por disputas comerciais, acusações de perseguição política e embates ideológicos – configura uma crise diplomática sem precedentes entre Brasil e Estados Unidos. A imposição de sanções contra Alexandre de Moraes, a investigação sob a Seção 301 e o envolvimento de atores como Trump e Rubio sugerem que Washington está disposta a usar seu peso econômico e político para pressionar o Brasil. Por outro lado, o governo Lula, com sua agenda de fortalecimento do BRICS e aproximação com potências alternativas, parece disposto a desafiar a hegemonia americana.
O desfecho dessa crise dependerá da capacidade de ambos os lados de encontrar um equilíbrio entre interesses nacionais e cooperação internacional. Enquanto isso, o caso Filipe Martins e as sanções contra Moraes continuam a reverberar, com o potencial de levar o Brasil a enfrentar consequências jurídicas e diplomáticas em fóruns globais, incluindo a possibilidade de inclusão do ministro na lista vermelha da Interpol.


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