Introdução: O Caso da Ultrafarma e o Dilema Ético
Nos últimos anos, a Ultrafarma, uma das maiores redes de farmácias do Brasil, esteve no centro de investigações do Ministério Público de São Paulo (MPSP) por sonegação fiscal. Acusada de sonegar cerca de R$ 200 milhões em ICMS entre 2018 e 2020, a empresa utilizava esquemas fraudulentos, incluindo manipulação de créditos tributários e franquias operadas por “laranjas”, para reduzir custos e oferecer medicamentos a preços extremamente baixos. Essa estratégia permitia à Ultrafarma atrair consumidores de baixa renda, que viam na empresa uma solução acessível para tratamentos médicos. Contudo, a prática levantou um dilema ético para cristãos: é moralmente aceitável comprar medicamentos sabidamente sonegados ou roubados, especialmente quando destinados a salvar a vida de um ente querido, como um filho ou esposa doente, e não há recursos para alternativas legais? Este artigo analisa essa questão sob a perspectiva de Norman Geisler, teólogo cristão e defensor do absolutismo graduado, que oferece uma abordagem bíblica para resolver conflitos éticos.
A Ética Cristã Segundo Norman Geisler
Norman Geisler, em sua obra Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas (Christian Ethics: Contemporary Issues and Options), apresenta o absolutismo graduado como a abordagem ética mais consistente para cristãos. Diferentemente de sistemas relativistas, como o antinomianismo (sem normas absolutas) ou o situacionismo (onde o amor é a única norma), o absolutismo graduado reconhece normas morais absolutas baseadas no caráter de Deus, reveladas nas Escrituras. No entanto, quando essas normas entram em conflito, o cristão deve escolher o dever moral de maior peso, sem incorrer em pecado, pois Deus ordena a busca do “maior bem”. Essa perspectiva é particularmente útil para dilemas complexos, como o de comprar medicamentos de origem ilícita.
O Dilema Ético: Comprar Medicamentos Ilícitos
Comprar um medicamento sabidamente sonegado fiscalmente (como no caso da Ultrafarma) ou roubado envolve um conflito entre normas morais bíblicas:
- Preservar a vida humana (Gênesis 1:27; Mateus 22:39): A vida é um dom de Deus, e salvar um ente querido, como um filho ou esposa doente, é um dever moral elevado.
- Não roubar e obedecer às autoridades (Êxodo 20:15; Romanos 13:1-7): Comprar um medicamento roubado implica participação indireta no roubo, enquanto adquirir um produto sonegado apoia a violação de leis fiscais, que sustentam o bem comum.
- Agir com integridade (Provérbios 11:3): A escolha consciente de apoiar práticas ilícitas pode comprometer o testemunho cristão e a honestidade.
O absolutismo graduado oferece uma solução para esse conflito, priorizando a norma de maior peso moral em situações extremas.
Quando Comprar Não é Pecado
Geisler argumenta que, em casos de conflito genuíno entre normas morais, o cristão deve seguir o dever superior. Ele cita exemplos bíblicos, como as parteiras hebreias que mentiram para salvar bebês (Êxodo 1:15-21) e Raabe, que protegeu os espias com uma mentira (Josué 2:4-6), sendo ambas elogiadas por Deus. Aplicando isso ao caso em questão, comprar um medicamento sonegado ou roubado pode ser eticamente justificado nas seguintes condições:
- Necessidade extrema: A vida de um ente querido está em risco, e não há meios financeiros para adquirir o medicamento legalmente.
- Ausência de alternativas: Programas como o Farmácia Popular, doações de igrejas ou negociações com farmácias não estão disponíveis.
- Intenção correta: A decisão é motivada por amor e responsabilidade, não por conveniência ou ganho pessoal.
No contexto da Ultrafarma, um cristão sem recursos, enfrentando a iminente morte de um filho ou esposa, poderia justificar a compra de um medicamento sonegado, pois o dever de preservar a vida supera o de evitar a participação indireta na sonegação. Geisler enfatizaria, contudo, que essa escolha é excepcional e não deve ser usada para justificar práticas ilícitas em situações menos graves.
Limites e Responsabilidades
Embora o absolutismo graduado permita essa exceção, Geisler destaca a importância de buscar alternativas éticas primeiro. No Brasil, programas como o Farmácia Popular oferecem medicamentos gratuitos ou subsidiados, e igrejas ou ONGs podem fornecer apoio. Além disso, o cristão deve:
- Orar por orientação divina: Buscar a vontade de Deus antes de tomar a decisão.
- Mitigar o impacto: Após a compra, considerar ações como denunciar anonimamente esquemas ilícitos ou apoiar políticas públicas que melhorem o acesso a medicamentos.
- Proteger o testemunho cristão: Evitar que a decisão seja percebida como endosso à ilegalidade, mantendo a integridade.
No caso da Ultrafarma, a sonegação prejudicava o bem comum ao privar o Estado de recursos para saúde pública, como o SUS. Assim, mesmo em situações extremas, o cristão deve pesar o impacto de sua escolha no tecido social.
Comparação com Outras Perspectivas Éticas
Outros sistemas éticos analisados por Geisler ofereceriam respostas diferentes:
- Antinomianismo: Permitiria a compra com base na intuição pessoal, ignorando normas bíblicas, o que Geisler rejeita por sua subjetividade.
- Situacionismo: Justificaria a compra com base no amor, mas Geisler critica sua falta de fundamento bíblico claro.
- Absolutismo não qualificado: Proibiria a compra em qualquer circunstância, considerando-a sempre pecado, mas Geisler argumenta que isso ignora conflitos éticos reais.
- Absolutismo conflitante: Permitiria a compra como um “pecado menor”, mas exigiria arrependimento, o que Geisler considera inconsistente com a santidade de Deus.
O absolutismo graduado, ao contrário, oferece uma solução que equilibra a fidelidade às Escrituras com a complexidade dos dilemas éticos.
Conclusão
Na perspectiva de Norman Geisler, comprar um medicamento roubado ou fiscalmente sonegado não é pecado em situações extremas, onde a vida de um ente querido está em risco e não há alternativas legais. O absolutismo graduado permite que o cristão escolha o maior bem – preservar a vida – sem violar a vontade de Deus, desde que a decisão seja excepcional e acompanhada de esforços para buscar soluções éticas. No caso da Ultrafarma, a compra de medicamentos sonegados poderia ser justificada em emergências, mas Geisler alertaria contra a normalização de práticas ilícitas, enfatizando a necessidade de integridade e justiça. Assim, o cristão é chamado a agir com sabedoria, oração e responsabilidade, refletindo o caráter de Deus em meio a escolhas difíceis.
Referências
- Geisler, Norman L. Ética Cristã: Opções e Questões Contemporâneas. 2ª ed. Edições Vida Nova, 2010.
- Informações sobre o caso Ultrafarma baseadas em reportagens do Ministério Público de São Paulo e cobertura jornalística até agosto de 2025.


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