O livro Uma História da Justiça, de Paolo Prodi (editora Martins Fontes, 2005, São Paulo) traz uma reflexão histórica de como a justiça foi vivida e pensada no mundo Ocidental, tomando-a como um patrimônio civilizacional, mas que, nos dias atuais estaria “se apagando, não obstante todas as brilhantes invenções teor éticas”.
O autor reflete a história da justiça a partir da crise atual do direito “em que o direito positivo tende a reduzir a normas toda a vida social, permeando todos os aspectos da vida humana que, até nosso tempo, eram baseados em diversos planos de normas, acaba por ossificar a própria sociedade e por se autodestruir, pois priva a sociedade daquele respiro necessário para a sua sobrevivência.”
O autor aponta que numa perspectiva histórica a atual crise do Direito estaria mais na ausência de fundamento do atual pacto político do que no funcionamento das regras constitucionais. Para o Prodi, o pacto político da democracia ocidental está ancorado em um “equilíbrio dinâmico entre a relação sagrada do juramento e a secularização do pacto político, fruto do dualismo entre poder espiritual e poder temporal, amadurecido no quadro do cristianismo ocidental.”
Segundo o escriba, para o êxito da Justiça deve-se exigir não só “o respeito às técnicas e aos mecanismo do sistema democrático, mas, em primeiro lugar, o espírito do dualismo, o húmus que gerou esses mecanismos e essas técnicas.”
Paolo Prodi é Professor de história moderna na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha. É irmão de Romano Prodi, que foi Presidente da União Européia. Nesse aspecto, o livro traz dados úteis para conhecimento da consciência histórica de extratos da elite globalizante.
O texto é útil para o momento em que vivemos no Brasil: desde a Constituição de 1988 milhares de condutas foram criminalizadas no Brasil. Os mandados constitucionais de criminalização – regras constitucionais expressas que determinam a criminalização de condutas – são em número significativo ( artigo 5o, XLI, XLII, XLIII, XLIV; artigo 7o, X; artigo 227 § 4o ), e as leis então, em profusão espantosa, desde proibitivos administrativos, fiscais e de posturas até criminalização especificamente falando. Diz-se que aproximadamente sete mil comportamentos foram tornados crimes desde a Constituição de 1988, a maior parte durante os governos de esquerda (PT-PSDB, de 1.994 aos dias atuais).
Recentemente, temos encontrado a investida do Estado nos espaços mais privados da vida social, como a família, com a Lei da Palmada, além da tentativa de regular cultos e proibir até mesmo o pensamento e sua expressão, como foi o caso do PL 122, sob o pretexto de criminalizar a homofobia.
Tudo isso sinaliza um desprezo ao dualismo sobre o qual foi fundada a democracia Ocidental, com evidente ofensiva contra as normas não positivadas, de natureza moral, familiar e religiosa, que regulam vários aspectos da vida social, acabando por desmontá-las. Isso também se correlaciona com a sobrecarga do Poder Judiciário e a judicialização da política, sendo elemento que não pode ser desprezado nas reflexões sobre o ritmo de colapso em que funciona o Judiciário hoje… mas isso é tema para outro artigo.
O objetivo da presente reflexão é alinhavar fatos concretos pertinentes à atuação das Igrejas nesse contexto. Nisso o livro de Paolo Prodi muito nos ajuda e, num sentido historicamente atual, nos traz a experiência de Dietrich Bonhoeffer. Prodi vincula o avanço de positivação dos aspectos da vida social e de supressão de normas não estatais que a regulem ao processo de descristianização do Ocidente. Ele reflete sobre isso nas páginas 516 e seguintes de seu volume tomando como “ponto de partida para uma reflexão sobre essas questões (…) a comparação de um teólogo evangélico como Dietrich Bonhoeffer com o poder do Terceiro Reich: isso nos permite ligar a realidade atual com a história de um longo período”.
É assim que Paolo Prodi fala da experiência histórica de Bonhoeffer:
- “Ele via uma crise comum a todas as Igrejas territoriais após a Reforma na incapacidade de produzir a ética como proposta de moral alternativa ao poder: a impossibilidade de pensar num Deus “tapa-buracos” – a última versão do Deus que governa o universo construído pela teologia e pela ciência do século XVII – obriga as Igrejas a reconsiderar radicalmente a sua relação com o mundo. O caso extremo das suas reflexões em 1.942-1.943 arrisca-se a ser ainda mais atual e dramático nos dias atuais. Deixando de lado o problema da sua formação intelectual e da sua teologia, referimo-nos à sua Ética, em cuja redação complexa ele trabalhava no momento de sua prisão em 5 de abril de 1.943, seguida pela reclusão em campo de concentração e pela morte. Enquanto toda a interpretação generalizada pelo seu pensamento é de um caminho da Igreja para o mundo, do religioso para o não religioso, na realidade, pode-se perceber no fundo um caminho oposto. Diante “deste” mundo, o de Hitler, que tudo subverte, Bonhoeffer parte em busca da Igreja para se perguntar se de algum modo dela pode surgir uma resposta no momento em que o poder se manifesta sem véus na sua crueldade, e as consciências individuais, salvo poucas exceções, são subvertidas pela corrupção ou pela propaganda. Assim surge seu texto ‘Sobre a possibilidade de a Igreja dirigir a palavra ao mundo’, escrito por volta do final de 1.942. A Igreja não pode dar ao mundo soluções cristãs para os problemas mundanos, pois o Evangelho move-se em sentido inteiramente oposto, e todas as vezes que na história a Igreja combateu o “mal” do mundo, nasceram catástrofes (das cruzadas ao proibicionismo americano, desejado principalmente pelos metodistas rigorosos); contudo, se os ordenamentos desse mundo transgridem os mandamentos de Deus, a Igreja pode e deve opor-se. A Igreja não pode mais, como durante os séculos anteriores, ser a guardiã moral da sociedade, mas também não pode se calar na emergência, no estado de exceção: não pode haver uma dupla moral, uma interna para a comunidade cristã e outra para o mundo. No entanto, a essa altura inserem-se as diferentes visões de Bonhoeffer sobre a Igreja Evangélica e a Igreja Católica, que são particularmente importantes do nosso ponto de vista. Ele contesta que se possa, como faz a Igreja Católica, “falar ao mundo com base em algum conhecimento racional ou de direito natural comum com o mundo e, portanto, abstraindo temporariamente do Evangelho. Diferentemente da Igreja Católica, a Igreja da Reforma não pode realizar tal feito. A lei de Deus ( o Decálogo, tanto na primeira quanto na segunda parte) e o Evangelho (o Sermão da Montanha) valem para todos: “seria, portanto, até errado insistir mais na pregação ao mundo sobre a luta pelo direito e na pregação à comunidade sobre a renuncia ao direito. Tanto uma quanto outra valem para o mundo e para a comunidade. A afirmação de que não se pode governar com o sermão da montanha é fruto de um equívoco de tal sermão. Mesmo o governo de um Estado pode honrar Deus lutando e renunciando, e é apenas disso que se ocupa a igreja. Nunca é tarefa sua pregar ao Estado o instinto natural de autoconservação, mas sim apenas a obediência ao direito de Deus. São duas coisas diferentes. O anúncio da Igreja ao mundo pode ser apenas e sempre Jesus Cristo na lei e no Evangelho. A segunda tábua não pode ser separada da primeira”. Nos tempos de crise, de dissonância entre a lei moral e a vida, aumenta a necessidade de ética, mas o “especialista de ética não pode ser o crítico e o juiz competente de toda ação humana; uma ética não pode ser o alambique para destilar o homem ético ou cristão, e o especialista de ética não pode ser a encarnação e o tipo ideal de uma vida radicalmente moral”. E aqui entra o problema da Igreja e os mandatos que Cristo lhe confiara: a moral só pode ser expressão da comunidade-Igreja enquanto tal, única autorizada por Cristo a falar de uma ética cristã coincidente com o mandamento de Deus – positivo, e não como negação – nos mandatos divinos próprios da Igreja, que se referem às formas fundamentais da sociedade, da própria Igreja, ou seja, que se referem às instituições do matrimônio e da família, do trabalho e da autoridade. Segundo Bonhoeffer esses são os pontos fracos da Igreja evangélica e da católica: “ A Igreja evangélica perdeu a ética concreta no momento em que o pastor não se viu mais colocado constantemente diante das questões e das responsabilidade do confessionário. Lamentando-se erroneamente da liberdade cristã, ele se subtraiu ao anúncio concreto do mandamento de Deus. Sendo assim, apenas se reconhecer o mistério divino da confissão a Igreja evangélica reencontrará uma ética concreta, como aquela que possuía ao tempo da Reforma.” Na Igreja católica, ao contrario, o sacerdote é preparado para a missão de confessor com o estudo dos casos de moral, mas corre-se o risco de uma “legalização e pedagogização” da palavra divina, e esse risco poderá ser superado com a redescoberta do mistério da pregação cristã. É a Igreja como “assembléia reunida em torno da palavra de Deus, como homens eleitos e que vivem em tal palavra, formando uma entidade comunitária, um corpo independente e, portanto, distinto dos ordenamentos mundanos…a entidade comunitária, que nasce em torno dessa palavra, não exerce domínio sobre o mundo, mas está totalmente a serviço do mandamento divino.” O reconhecimento da Igreja como realidade comunitária é o elemento central para uma possível reforma das Igrejas cristãs: “O catolicismo corre o risco de conceber a Igreja essencialmente como um fim em si mesma, á custa do mandato divino do anúncio da palavra. Vice-versa, a Reforma corre o risco de levar em conta apenas o mandato divino do anúncio da palavra à custa do âmbito específico da Igreja e de ignorar por completo o fato de que esta também é um fim em sim mesma, fato esse que consiste no seu ser para o mundo”. A resposta não dada aos cristãos que se recusam a prestar o juramento de fidelidade a Hitler e o serviço militar é uma manifestação dramática dessa fraqueza.”
Cabe aqui reflexões sobre a contemporaneidade do texto acima para o Brasil. A primeira – do final para o início do texto acima, traçando paralelos entre aquela experiência e a nossa realidade – é o silêncio que parcela da Igreja evangélica atual, principalmente os movimentos ligados à Teologia da Missão Integral, faz do desequilíbrio do dualismo fundamental da democracia, pouco se manifestando – quando não se manifesta a favor e quando não critica os que a denunciam – acerca das ofensivas dos governos de esquerda sobre setores da vida social regulados por normas não estatais, especialmente morais.
Sem sombra de dúvida, recentemente pouco ouvimos de além dos cristãos conservadores quaisquer defesa do direito dos cristãos e outros grupos se regularem por suas normais próprias na questão da educação familiar (Lei da Palmada) e das relações de gênero (Projeto de Lei 122). No fato da cassação do registro profissional da psicóloga Marisa Lobo a situação foi alarmante, com cristãos esquerdistas defendendo tal medida. Ao contrário, o que ouvimos foi um ataque de cristãos historicamente relacionados aos candidatos de esquerda contra quem lutava pela manutenção do dualismo fundamental da experiência democrática Ocidental. Os grupos evangélicos de esquerda caminham para o mundo, dizendo cumprir o mandato de Cristo, mas na verdade o que fazem é levar a igreja para a secularização, e o pior, usam a igreja como peso de desequilíbrio entre o poder espiritual e o secular, minguando o poder espiritual, e apagando, assim, o espírito da dualidade fundamental da Democracia Ocidental. Seus líderes têm ciência disso, mas a maioria pensa fazer o bem e tornar a Igreja relevante quando, na verdade, não só contribuem para a irrelevância dela, como para a extinção do ambiente democrático que ela ajudou a fundar.
Outra lição é sobre a manipulação do termo comunitário e a perda de sua dimensão verdadeira. Bonhoeffer usa a expressão comunitário no sentido específico de coletivo, como comunidade de indivíduos marcados por uma normatividade moral comum. Essa comunidade tem as suas normais morais e éticas próprias, que regulam a vida dos que a compõem nos seus aspectos de família, trabalho, culto e autoridade. Todavia, devido à guerra ideológica, parece que os defensores da Teologia da Missão Integral opõe comunidade a indivíduo, substituindo a relação de complementaridade desses conceitos por uma de antagonismo, mas sempre no sentido ideológico, que culmina, ao fim, em uma defesa do totalizante (a esquerda totalitária através do Estado) contra o individual (a ser sempre visto como egoísta, por bem gerenciar e dispor de seus talentos, entre os quais o espírito crítico). O interessante é que esses líderes esquerda só enxergam a Igreja como comunidade na hora de impor sentimento de culpa acerca da pobreza bem como da necessidade de distribuição de bens e riquezas dos outros; mas não a vêem como comunidade quando têm que defender as normas não estatais próprias dessa comunidade.
Por fim, traço um último paralelismo: para Bonhoeffer a Igreja era a única autorizada a falar de uma ética cristã para a sociedade acerca das formas fundamentais dessa sociedade: matrimônio, trabalho, autoridade e família. Diferentemente de celebrados pastores e teólogos de hoje, Bonhoeffer não diz que a igreja precise fazer qualquer esforço ecumênico, nem tampouco descobrir coincidências entre os mandamentos bíblicos e a ordem natural das coisas. Sem a pusilanimidade de muitos pastores brasileiros, ele não fala de estratégias de contextualização e construção de relevância social ou econômica para que a Igreja ainda seja ouvida pelo mundo. Bonhoeffer tinha uma visão clara e segura de que o adubo sobre o qual floreceu a democracia Ocidental tinha esterco da experiência cristã; que dessa lavoura brotaram espécies semeadas da mão dos crentes em Jesus; que nos alicerces da democracia Ocidental, havia ferro e cimento do Evangelho. Ele via o Nazismo como uma ofensiva de descristianização do Ocidente e sua democracia, de desequilíbrio desses fundamentos, e lutou pela manutenção desse dualismo às custas da própria vida. Ele era contra o Estado que a tudo regulava.
Uma visão clara pode muito bem nos preparar para o enfrentamento dessa ofensiva de descristianização do Brasil; de esvaziamento da normatividade não estatal da família, igreja e outros setores. A experiência de Dietrich Bonhoeffer nos alerta: a normatividade estatal de amplos aspectos da vida social – inclusive igreja, família, trabalho (aqui inclui-se o empreendedorismo e a livre iniciativa) e matrimônio (na nossa experiência histórica entre homem e mulher) – é uma ferramenta de secularização e de destruição da Cristandade no Brasil. Por isso, a ação política dos cristãos, nesse momento histórico, deve ser só uma: apoiar toda iniciativa de diminuição do poder estatal sobre a vida em sociedade.
*Carlos HB de Castro Magalhães é Advogado no Rio de Janeiro.

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