Em um texto anterior falei dos vícios de pensamento revelados durante a discussão sobre a crise do covid-19. Uma leitura contrario sensu daqueles vícios nos fornece alguns princípios organizadores das informações relativas ao tema, possibilitando uma deliberação mais efetiva e um apoiamento e/ou rejeição mais racional e inteligente do tratamento dado ao tema.
Nessa breve reflexão utilizo elementos relativos à teoria do conhecimento de Edgar Morin sobre o chamado Pensamento Complexo; expedientes e referências a artifícios de mediação de conflitos formulados por Marshall Rosenberg (e abstrações minhas como observador e mediador de conflitos); e alguns esquemas dos ensinos de negociação de William Ury e Roger Fisher em seu livro “Como chegar ao Sim”, do Projeto de Negociação de Harvard.
O primeiro ponto é a consciência da complexidade da crise, que começou como um evento epidemiológico, mas se transformou num evento econômico, diplomático, familiar, político e social. Por ser complexa, a abordagem não pode ser decomposta, isto é, realizada levando em conta somente um desses aspectos.
Além disso, a crise é humana, afeta seres humanos integralmente – e não só na sua dimensão de saúde do corpo, mas também na sua dimensão econômica, familiar e social. Por isso, conclusões que se reduzem apenas à contenção do vírus – ou, do lado posto, apenas à continuidade da atividade econômica – sem atentar para o elemento humano em sua totalidade, devem ser descontinuadas.
Por elemento humano em sua totalidade fala-se do cidadão não só como exo-referente – isto é, visto de fora para dentro em seu papel sócio institucional – mas também do indivíduo auto-referente, que age por sua adesão a uma conduta ou posição em relação às demandas estatais e da sociedade decorrentes da crise. Na crise não são apenas números a ocupar leitos, ou idosos ou atletas a adoecer, ou cnpj’s a falir e ctps’s a perder empregos ou camelôs a ficar sem vender seus produtos no trem. Posturas, palavras e tomadas de decisão tendo as pessoas apenas como exo-referentes e desprezando reações, consequências, sentimentos e empatias auto-referentes contribuirão para o agravamento da crise.
Nenhuma solução para a crise virá, de per si, dos saberes dos especialistas isoladamente considerados. De igual modo, quanto mais nos fiarmos, para a compreensão da crise, nos saberes especializados para organizar nossa compreensão do problema mais sofreremos e erraremos. Temos que cotejar saberes com saberes, por mais antagônicas que sejam as recomendações deles derivadas, e procurar pontos de contato entre elas, e a partir daí fazer a conciliação das recomendações.
Uma boa perspectiva para conseguir pontos em comum entre posições opostas – como aquela entre manter economia funcionando e evitar que pessoas morram de fome antagônica da que recomenda o isolamento total – é a perspectiva da alteridade. É, durante a reflexão sobre a crise, tomar o outro como um elemento real. É ver em perspectiva as consequências que a minha posição sobre o tema terá sobre a vida dele. O que se concluí, daí, é que os dois lados estão certos: ambos querem proteger a si e aos seus amados do sofrimento, seja do sofrimento pela morte em decorrência do vírus, seja do sofrimento pela morte por fome, da mendicância, da morte em vida, do desespero de não poder alimentar os filhos.
Esse ponto em comum entre os dois é o ponto de contato que une abordagens opostas e dá respeito e sacralidade à saúde e ao trabalho. Esse ponto em comum, dentre outros, é que vai organizar os saberes diversos e opostos resultando em propostas e ações diversas que – embora muitas vezes possam parecer incoerentes – no fundo compõem uma e só linha de enfrentamento à crise. É a técnica do ponto de contato que explica o Presidente da República falar com ambulantes (uma das classes economicamente mais vulneráveis na crise) enquanto o Ministro da Saúde recomenda isolamento; é que, tendo os informais como auto referentes, a presença do principal agente do Estado os tranquiliza, até que os poderes da União votem e efetivem as respectivas medidas de amparo.
Não há como manter-se nos simplismos, ou esperar que as ações de enfrentamento a um problema complexo sejam coerentes. Na maioria das vezes, tomadas isoladamente, elas não fazem sentido. Mas o seu conjunto – tal qual um enorme quebra cabeça completado – demonstra que todas elas eram/são necessárias.

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