BLOG CASTRO MAGALHÃES

Editor: Carlos HB de Castro Magalhães (MTb 0044864/RJ)

Religião, Direito, Política, Cultura Pop e Sociedade

Editor: Carlos HB de Castro Magalhães, Registro Jornalista MTb 0044864/RJ

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A maneira como o homem moderno percebe Deus determina sua ética. Em tempos de pandemia – em que cada um tem responsabilidade para com os outros e a comunidade em geral – isso nos leva a tentar verificar o estado atual da percepção de Deus que o povo cristão tem, principalmente de como se percebe a relação de Deus com a pandemia.

Uma das percepções prevalecentes de Deus entre os culturalmente ditos cristãos – resultante da influência iluminista e da modernidade – é a do Deus das lacunas. As pessoas,  com sérios problemas para compreender e praticar as doutrinas da Criação e da Queda – mesmo que as confessem, não têm uma teologia do todo da existência, mas uma teologia de lacunas da vida. Ou seja, Deus é um Deus de lacuna – um Deus chamado a intervir onde a Ciência não resolve e onde a ação humana (geral ou pessoal) é impotente.

Isso acontece desde movimentos como “design inteligente” – que é incapaz de oferecer uma explicação completa do mundo, como bem afirma Allister McGrath em sua Teologia Natural – até às práticas devocionais dos crentes que vão às igrejas em busca de milagres e prodígios para suas vidas. Para boa parte da espiritualidade cristã contemporânea Deus é um Deus das lacunas a quem se apela quando há um déficit explicativo daquilo que acontece conosco – déficit que a ciência e as soluções da vida prática diária (da nossa capacidade pessoal) não conseguem preencher.

No Brasil – uma República fundada no cientificismo dos positivistas que a proclamaram – isso acentua-se pelo elemento de organização política e social. No livro  Sortilégios de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990), lançado pela editora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ana Lúcia P. Schritzmeuer estuda os os fundamentos de julgamentos de casos envolvendo acusações de curandeirismo em instância recursal  e demonstra como os juízes qualificaram, no  século XX,  a liberdade de culto,  protegida pelas Constituições  republicanas, e como distinguiram magia e religião.

Assim, por exemplo, práticas mágicas eram chamadas de religiosas se fossem realizadas numa instituição que se propusesse ao estudo científico do espiritismo; previsões do futuro realizadas por uma cartomante na rua eram tidas como magia enquanto se feitas num experimento parapsicológico em uma universidade, seriam ciência; um homem dizendo-se xamã seria um charlatão mas um psicólogo clinico usando técnicas xamânicas seria um profissional da saúde mental.  Quanto às igrejas cristãs, principalmente as pentecostais e neopentecostais, sua adequação ao cientificismo republicano seria também pela via lacunar: o milagre, a libertação das dores da alma, a solução de problemas insolúveis (situações extremas não explicadas, não  resolvidas, e ou não oferecidas pela ordem político social emprenhada de cientificismo porém suplementando-a) tornavam as igrejas evangélicas aceitas pelo ordem vigente. Deus passou a ser Deus apenas  onde a ciência permitisse que fosse percebido: onde houvesse déficit explicativo.

Muitas igrejas e cristãos integraram a ciência na ordem da existência cristã como um meio ordinário de Deus e os milagres como meios extraordinários – mantendo-se fiel à cosmovisão cristã.  Porém parece que a percepção lacunar de Deus se não é mais barulhenta é predominante, pois ela aparece no cotidiano: expressões como Deus de milagres, a última palavra não é do médico ou do homem, mas de Deus; cultos específicos de cura e solução de problemas; a prática de exibir exames e diagnósticos de doenças incuráveis e depois relatar a cura dos mesmos (muito comum em programas de igrejas na televisão) – tudo indica que a maioria dos cristãos percebe Deus como apenas organizando lacunas de suas vidas, e não a sua vida e a vida de todos e o mundo todo.

Os comentários de extração secular também ilustram o Deus lacunar: “num país sem escolas as igrejas têm um papel muito importante“; ou “se não fossem as igrejas a violência teria explodido no Brasil” – sempre na entonação legitimadora da existência das igrejas.  Os crentes desesperados para que a igreja encontre relevância pela prática da ação e justiça social também ilustram o serviço ao Deus das lacunas.

Num contexto assim a ética e a moralidade cristã também serão lacunares.

Essa abordagem introdutória da relação entre teologia, organização política e social e ciência é necessária para o estudo da ética dos Dez Mandamentos em época de Pandemia.

Uma Ética dos Dez Mandamentos vai no caminho oposto da ética lacunar decorrente da percepção lacunar de Deus. Deus não é um Deus de lacunas mas o Deus ao qual se ama “de todo o coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Deut. 6.5) – registrou Moisés no capítulo em que escreveu as regras de ensino da Lei ao povo de Israel. O amor a Deus é forma de engajamento do cristão na vida, na ordem da existência, indicando que ele reconhece que Deus o ordena e o vocaciona nessa existência, que ele está onde, deve se mover e se move para aonde Deus quer que ele se mova. O lugar onde está e o que ele faz é um posto no qual Deus o colocou, e isso inclui seu trabalho, sua famíla, sua comunidade e suas relações;  tudo dentro da ordem das coisas que Deus estabeleceu e controla. No capítulo X, do livro III de suas Institutas da Religião Cristã, Calvino diz:

” É preciso levar em conta isto: que o Senhor ordena a cada um de nós, em todas as ações da vida, que atentemos para sua vocação. Pois Ele sabe com quão grande inquietude se inflama o engenho humano,  de quão inconstante volubilidade cada um é levado para cá e para lá, quão ávida  é sua ambição em abraçar diversas coisas a um só tempo. Portanto, para que através  de nossa estultícia e temeridade, de cima para baixo, não se misturem todas as coisas, Deus ordenou a cada um seus deveres em gêneros distintos de vida. E para que alguém não ultrapassasse temeriariamente seus limites, chamou vocações a essas modalidades de viver. Daí, para que não sejam levados em volta às cegas por todo curso da vida, a cada um foi atribuída pelo Senhor, como se fosse um posto de serviço, sua forma de viver.”

 Citando exemplos bíblicos de que Deus condena o homem comum por “deitar a mão a um tirano” – embora considerando seja nobre livrar a pátria da tirania – Calvino destaca que essa ideia de vocação (de nos diversos gêneros da existência em que estamos tempos um posição limitada como que um posto de serviço), Calvino conclui que

“a vocação do Senhor é em tudo o principio e o fundamento do agir correto, à qual quem não se reportar, jamais se aterá  ao caminho reto em suas atividades. Talvez poderá ele, às vezes engendrar algo louvável na aparência; entretanto, o que quer isso seja à vista dos homens, será rejeitado diante do trono de Deus. Ademais, nenhuma harmonia haverá entre as próprias partes adversas da vida”

Não à toa Deuteronômio 8.17 e 18 afirmam: “E digas no teu coração: a minha força e a minha força, e a fortaliza da minha mão, me adquiriu este poder. Antes te lembrarás do Senhor teu Deus, que Ele é o que te dá força para adquirires riqueza; para confirmar a sua aliança (…)”. Deus não nos dá a força para que ajamos como nós queremos, mas como a vocação dEle para nós.

Assim, na ordem de existência em que estamos inseridos, ocupamos e nos movemos para posições às quais Deus nos vocacionou; agimos conforme o caráter dAquele que nos vocacionou, em conformidade com os talentos (força) que Ele deu a nós; e respeitando –  em tempos de Pandemia – os limites que Ele deu a médicos,  governantes, cientistas e gestores públicos.

O Deus das lacunas é muito conveniente para quem divide a realidade em dois domínios: um religioso e outro científico. Porém uma ética cristã não faz essa distinção. Charles Coulson (1910-1974, primeiro professor de quimica teórica de Oxford e conhecido por seu empenho no diálogo entre ciência e teologia cristã), citado por Alister McGrath em sua Teologia Natural diz que essa distinção de domínios é um equívoco:

“Esse é um passo fatal. Pois equivale a afirmar que se pode erguer uma espécie de cerca no território da mente para estabelecer o limite  em que ocorre uma transferência de autoridade. Seu erro é duplo. Em primeiro lugar, pressupõe  uma dicotomia de existência que seria tolerável se nenhum cientista jamais fosse cristão e se nenhum cristão jamais fosse cientista, mas que se torna intolerável quando há uma pessoa comprometida com os dois lados. Em segundo lugar, convida a “ciência” a descobrir coisas novas e, consequentemente, pouco a pouco a se apropriar do que outrora era sustentado pela “religião”. [Nota do autor: inclusive a ética das religiões]

Desses limites que respeitamos em cada um conforme sua posição na ordem da vida deriva a prerrogativa que se aos nossos limites respeitem. As éticas das culturas e religiões se escrutinam, mas não se violam. Como cristãos declaramos que os testemunhos do Senhor são eternos; há os que os abandonam e, nos arraias de Seu povo, os violam. Na ordem da vida, cristãos ou não, todos têm uma percepção da realidade e se reconhecem (ou deveriam ou buscam isso) se reconhecer em algum ponto dentro dela, agindo a partir dela.

A modernidade demonstrou a impossibilidade de a ciência tudo explicar – pelo contrário, como já expusemos em textos anteriores (aqui, e aqui), o Iluminismo como organizador de toda a realidade da vida teve resultados catastróficos. Assim, crer que apenas a ciência nos faz agir corretamente em Pandemia é um erro com que o cristão não pode compactuar. Alertado sobre a necessidade de adequar seu comportamento ao perigo do vírus, há ele de agir conforme a cosmovisão cristã, e praticar suas obrigações éticas conforme os Dez Mandamentos e o Sermão da Montanhar, em que há lugar para o conhecimento científico, mas ao qual a realidade não se limita.

Nesse estudo da vontade de Deus para a nossa ação no lugar da vida em que estamos nos uniremos aos irmãos em Cristo de todos os tempos. A mesma ética dos Dez Mandamentos deles será a nossa ética, apesar de tempos diferentes. Ao contrário do Zaratrusta de Nietzche que quebrou tábuas, escreveu novas e escolheu apenas um mandamento (lealdade) para cumprir durante toda a existência, pensando com isso simplificar a vida, o cristão tem Dez Mandamentos que não se quebram no tempo; todos eles interligados para as dimensões da vida que são todas interligadas – viver não é simples!

No texto Regras para bem interpretar os Dez mandamentos, que pode ser acessado clicando-se aqui, verificamos como os Mandamentos  contextualizam a si  nos problemas contemporâneos e nos problemas complexos. Assim, por exemplo, as correlações dos Mandamentos com os elementos neles referidos e derivados, ou a conexão dos mandamentos entre si, como lei inteira de Deus (lex copulativa est), nos ajudarão na tarefa de nos localizarmos eticamente nos principais temas decorrente da Pandemia: cuidado com o próximo e consigo mesmo; direito ao trabalho e ao empreendimento; e desobediência civil. Afinal, ao pé do Monte Sinai, quem falou não foi um deus de lacunas – mas o Deus de toda a vida, que tudo governa e que tudo criou – e que determinou para nós uma maneira certa de agir.

 

 

 


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Uma resposta para “A Ética Cristã e o Deus das lacunas em época de Pandemia”.

  1. Avatar de GILZA MARIA L BIANCHI BITENCOURT
    GILZA MARIA L BIANCHI BITENCOURT

    Excelentes artigos de bom censo, centrado com equilíbrio. Bravo, Gilza

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